terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Terrenos Urbanos Abandonados e o Direito à Cidade: Por que o Município deve poder utilizá-los de forma temporária



O abandono de terrenos urbanos sem muro, sem cerca e sem manutenção adequada é um problema cada vez mais presente no cotidiano das cidades brasileiras. Esses espaços, deixados à própria sorte, tornam-se verdadeiros pontos de descarte irregular de entulho, lixo e restos de poda. A consequência direta é o aumento de vetores de doenças, proliferação de insetos, degradação ambiental e insegurança para a população.

Diante desse cenário, compartilho no final do artigo a minuta sugestiva de uma proposta legislativa que autoriza o Município a ocupar, utilizar e manter temporariamente terrenos urbanos desprotegidos e abandonados, após devida notificação ao proprietário. Trata-se de uma ideia que não apenas se harmoniza com a legislação vigente, como também concretiza princípios constitucionais fundamentais.


A função social da propriedade: um dever constitucional

A Constituição Federal é clara: a propriedade urbana deve cumprir sua função social (art. 5º, XXIII, e art. 182). Isso significa que o direito de propriedade não é absoluto; ele está condicionado ao interesse coletivo e às necessidades da vida urbana.

Um terreno abandonado, sem cerca, acumulando lixo e trazendo risco à vizinhança, não cumpre função social alguma. Pelo contrário, viola o direito à saúde, à segurança e ao meio ambiente equilibrado — todos igualmente protegidos pela Constituição.

Portanto, permitir que o Município intervenha temporariamente para garantir limpeza e uso adequado não é invasão de propriedade, mas concretização de um comando constitucional.


O Estatuto da Cidade respalda a medida

O Estatuto da Cidade (Lei Federal n.° 10.257/2001), que regulamenta a política urbana no Brasil, reafirma que:


  • o uso do solo deve favorecer o bem coletivo;
  • o Município tem instrumentos para garantir que imóveis urbanos ociosos ou sem função sejam integrados ao interesse público;
  • o planejamento urbano deve prevenir degradação ambiental, riscos sanitários e desordem urbana.


A proposta de lei municipal que autoriza o uso temporário de terrenos urbanos abandonados está em perfeita sintonia com esses dispositivos. Inclusive, o Estatuto prevê mecanismos mais duros — como o IPTU progressivo e a desapropriação sancionatória. Em comparação, o uso temporário é uma medida muito mais moderada e proporcional, limitada no tempo e condicionada ao interesse público imediato.


Princípios jurídicos que embasam a iniciativa

A proposta se apoia em diversos princípios fundamentais do direito administrativo e urbanístico, entre eles:

1. Princípio da função social da propriedade: O interesse coletivo prevalece quando a propriedade causa danos à coletividade.

2. Princípio da supremacia do interesse público: O Município tem o dever de agir para proteger a saúde pública, o meio ambiente e a ordem urbana.

3. Princípio da prevenção: A Administração deve evitar que situações de risco — como terrenos que acumulam lixo ou servem de criadouro para vetores — se agravem.

4. Princípio da legalidade e proporcionalidade: A medida é legal, baseada em autorização legislativa, e proporcional, já que prevê notificação prévia e preservação do direito de propriedade, permitindo a retomada a qualquer momento pelo dono.

5. Princípio da eficiência: É irracional que o Município gaste recursos constantemente para limpar áreas privadas abandonadas, sem possibilidade de responsabilizar o proprietário. A lei resolve isso ao permitir rateio dos custos e o uso adequado do espaço.


Benefícios diretos para a população

A autorização para uso temporário de terrenos urbanos abandonados traria diversos benefícios concretos:


  • redução de pontos de descarte irregular;
  • diminuição da proliferação de insetos e vetores de doenças;
  • maior sensação de segurança nos bairros;
  • possibilidade de transformar áreas ociosas em hortas comunitárias, jardins, espaços de convivência ou estacionamentos provisórios;
  • economia de recursos públicos pela cobrança dos custos ao proprietário negligente.


Ou seja: ganha a cidade, ganha o meio ambiente e ganha o interesse coletivo.


Uma medida moderna e alinhada ao direito urbanístico

Diversas cidades brasileiras e estrangeiras já discutem ou implementam políticas semelhantes, pois compreenderam que o espaço urbano abandonado é sinônimo de retrocesso. O município contemporâneo exige dinamismo, cuidado e responsabilidade compartilhada.

A sugestão de proposta de lei não retira a propriedade de ninguém! Apenas garante que, quando o proprietário não cumpre seu dever mínimo de manter o terreno fechado e limpo, o Município possa agir em defesa da saúde e do ambiente urbano.


Conclusão: uma legislação necessária e legítima

Em tempos de crescente urbanização e desafios ambientais, o poder público não pode ficar de mãos atadas. A Constituição, o Estatuto da Cidade e os princípios jurídicos dão suporte claro e inequívoco à adoção dessa medida.

Permitir ao Município ocupar e utilizar temporariamente terrenos urbanos não murados ou abandonados não é apenas legal — é necessário. É uma resposta equilibrada, moderna e socialmente responsável.

Mais que uma proposta legislativa, é um passo em direção a uma cidade mais humana, mais limpa e mais segura.


MINUTA DE PROJETO DE LEI MUNICIPAL

A seguir apresento uma minuta simples de projeto legislativo que serve como ponto de partida para um amplo debate.


Ementa: Autoriza o Município a ocupar, utilizar, limpar e manter terrenos localizados na zona urbana que se encontrem sem cercamento, sem muro, sem manutenção ou em estado de abandono, visando prevenir o descarte irregular de resíduos, promover a saúde pública e garantir a função social da propriedade.


Art. 1º - Fica o Poder Executivo autorizado a ocupar, utilizar, limpar e manter, de forma temporária, terrenos urbanos privados que se encontrem:

I – sem cercamento ou muro;

II – sem manutenção adequada, caracterizados por acúmulo de entulho, lixo, restos de poda ou outros materiais;

III – em situação de abandono, entendida como ausência de uso, ocupação ou conservação pelo proprietário;

IV – em condição de risco à saúde pública, ao meio ambiente ou à segurança da população.


Art. 2º - Antes da ocupação ou intervenção, o Município deverá proceder a abertura de processo administrativo e notificar o proprietário, o espólio, ou os herdeiros, na firma prevista em lei, concedendo prazo mínimo de 15 (quinze) dias para que cumpra a sua obrigação de cercar, limpar ou manter o imóvel, sendo obrigatório lavrar auto de vistoria demonstrando o estado de abandono ou ausência de manutenção.

Parágrafo Único - Não sendo identificado o proprietário, deverá ser publicado edital de chamamento, com prazo mínimo de 15 dias.


Art. 3º - Decorrido o prazo sem manifestação ou providência do proprietário, o Município poderá, por razões de interesse público, adotar as seguintes medidas:

I – realizar limpeza, capina, retirada de lixo, resíduos e galhadas;

II – instalar cercamento provisório, placa de advertência e controle de acesso;

III – utilizar o espaço para finalidades públicas temporárias, tais como:

a) jardinagem ou arborização;

b) horta comunitária;

c) área de convivência;

d) ponto de apoio operacional;

e) estacionamento público provisório;

f) outras atividades de interesse social previamente justificadas.


Art. 4º - As despesas decorrentes das intervenções realizadas pelo Município serão lançadas ao proprietário na forma de preço público, incluindo:

I – custos de limpeza;

II – remoção e destinação de resíduos;

III – cercamento provisório;

IV – manutenção de uso temporário;

V – demais despesas necessárias para preservar a função social do imóvel.

§1º - O não pagamento das despesas autoriza a inscrição do valor em Dívida Ativa.

§2º - O Município poderá celebrar convênios ou parcerias com associações de moradores, cooperativas ou organizações sociais para o uso temporário da área.


Art. 5º - O uso temporário não transfere a propriedade nem implica desapropriação, mantendo-se todos os direitos do proprietário, que poderá requerer a retomada do imóvel a qualquer tempo, desde que:

I – assuma integralmente sua manutenção;

II – apresente projeto de uso conforme a função social da propriedade;

III – arque com eventuais valores pendentes junto ao Município.


Art. 6º - Caberá ao órgão municipal competente, criar, manter e atualizar o cadastro municipal de terrenos abandonados ou sem manutenção, contendo endereço, situação, providências adotadas e custos, devendo a listagem ser divulgada no portal eletrônico da Prefeitura na internet.


Art. 7º - Esta Lei será regulamentada pelo Poder Executivo no prazo de 60 (sessenta) dias, definindo procedimentos, modelos de notificação e critérios técnicos de vistoria.


Art. 8º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.